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EU, ELDER F.


Livros, filmes, fotografias e histórias contadas pela metade.
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Não dá! - Conto


Meia-noite e uma cama, nervosismo perceptível e ansiedade ultrapassada. “Vem ou não vem, vem ou não vem?” Não vem. Mas esperara-se a chegada como forma de sofrer e depois contar dos sofrimentos. É mais significativo dizer que se espera até as quatro da manhã do que dizer que dorme às onze da noite. Levanta, deita, conta, pega uma folha e escreve abobrinhas sentimentais. “Preciso te transformar em esquecimento.” Mas não se esquece o que está impregnado, fixo. Não raro tenta se ignorar, raro se consegue.

Vai baforando um hálito caipirinha e mel, embora o beber tenha perdido sua prioridade. Não vem, mas disse que vinha. “Deve tá se agarrando com outro alguém, eu aposto!” Nada que o tempo não acalme e a morte não leve. Mas avisasse antes da demora, alertasse com antecedência, qualquer dizer era viável. Ou não.

Pára, anda, pára, abre a janela do apartamento e olha quase esperançosamente para baixo: e nada. Arranca folhas de um velho bloco e continua a escrita, outras palavras, mais baboseiras, mais por escrever do que pra escrever. Paciência é mordomia, o que agonia é a incerteza. Quase duas da madrugada e notícias não surgem. Espera, espera, esperneia e explode a raiva na sorte. Não dá mais pra esperar. “Não dá!”

“Tá decidido, chega disso!” Cancela tudo, desliga as luzes, prepara a cama pro sono e sonha pra acalmar. Praguejando aos ventos e dizendo asneiras. “Isso acaba, nunca mais, nunca mais, nunca mais um mísero sentimento meu!” Enrola-se nos panos com a cara entre os dedos e os dedos sentindo os desabafos. “Dessa vez não vai ter volta.”

Enrola-se e deita, abre olho, fecha rápido. Levanta-se e aos pulos,como se apostasse consigo mesmo, abre a janela: ainda nada. Era óbvio, era difícil de entender. Um toque ligeiro no celular e ele pisca, pisca, pisca, dançando no vibra call. Olham-se quase que desconhecidos de si mesmos, o celular e o seu dono. Era uma mensagem, uma aparente curta mensagem, não lê, não responde. E dorme com a certeza de que as coisas não vão mudar. É o hábito insaciável que não pára.

Destempero - Conto

Há os que temem, há os que não temem; há os que fogem e os que deixam o presente passar. E eis que passamos tão rápido hoje. Morre gente lá fora e nós continuamos inventando um motivo para morrer. Que venha a morte então, com sabor de álcool e aroma de camélias. Um homem morre e todos choram por não tê-lo conhecido. Devo chorar quando o homem ainda não morreu para mim? Se em conversas bestas prossigo, hei de prosseguir contigo.

Cartão postal do paraíso


Nadava sem jeito na falta de espaço e descansava mesmo sem cansaço algum. Era assim, estranho no início, confortável em seguida. No dicionário, depois, descobri que paraíso definia melhor a úmida atmosfera. Mas o nome era diferente. Chamavam-lhe ventre, diziam sempre, e o líquido em que mergulhava, amniótico.  No invólucro protetor, perto do quinto mês, minha audição já processava asneira: um falatório repetido sobre gente que eu não conhecia. Era fofoca, fui descobrir anos mais tarde, usada quando a vida dos outros é mais atraente que a nossa.

Um dia, sem quê nem para quê, fui cuspido para fora. Expulso do paraíso e enxotado do meu, até então, sossegado éden. Encravado no aconchego e vivendo cada dia por viver, vomitaram-me como se existir fosse pecado. Uma barbaridade, uma claridade forte e umas mãos pesadas em mim. O doutor, enquanto agarrava-me pelos pés, sorria com dentes grandes. Tão feio que não deu outra: chorei logo no instante em que o vi.

Conheci tudo quanto era gente e chorava em tudo quanto era ouvido. No futuro, quando a língua gesticulava, batizei a dona de um desses ouvidos de mãe. Criatura atenta a mulher, cuidava de tudo. Logo eu pensava e ela adivinhava meu querer. Uma formosura de pessoa, não durou muito e assim, com tanto chamego, me apaixonei. Um amor à primeira experiência de vida.

Fui tomando corpo, as pernas crescendo, os dentes caindo e, quando dei por mim, já tinham roubado minha infância. O amor de minha mãe já não era suficiente, uma urgência no meu peito crescia, um desejo queimava. Mesmo não sabendo do que se tratava, apenas sabia que nunca estivera ali. Era como dar falta de alguém que não existia, sentir saudade de algo que nunca se teve.

Eu crescia cada vez mais enquanto um calor pulsava cada dia mais intenso, confundindo tudo e semeando estranhos pensamentos. Quando conhecendo a mim, descobria sensações que ninguém mais parecia ser capaz de me oferecer. Uma cócega agradável e um conforto que me saciava por completo. Expulso do paraíso, fui encontrar alívio nos braços de minha mãe. Quando nem mais o paraíso de seus braços me consolavam, encontrei o refrigério em meus próprios toques e devaneios.

Quando a adolescência passou e a puberdade me deixou suas marcas, foi então que pude ser capaz de sentir. Uma sensação específica proporcionada por uma pessoa muito especial, um brilho intenso que iluminava no mesmo reflexo que cegava a vista, um canto que extasiava ao mesmo tempo em que ensurdecia. Foi assim, de repente, que descobri que minha maior necessidade era de amor. Amor que transpunha o sentimento e que repousava na carne. Amor de entusiasmos que incendiava o senso crítico. Amor que era um cartão postal do paraíso.

Esses tempos... - Conto

Há cartazes por todos os lados. Mas algo está diferente, nada em relação aos cartazes, estes vejo todos os dias, é algo em relação ao tempo. Está tudo passando tão lentamente hoje, coloco os planos em ação e os planos que tenho me tiram o juízo. Mas há vantagens em ter o tempo deste modo. O tédio pode me visitar outras vezes sem que se preocupe com o instante de ir embora. E fica comigo nos dias, a manipular perguntas:

-O que você comeu hoje? pergunta-me com ar de curioso, sem necessariamente estar.

E assim passamos minutos que já o tempo quase parado os faz muito longos. Olho para meus pés e começo a perceber a distância entre o que é parte de mim e o que ainda é parte de mim sem necessariamente ser. Esses espermatozóides, por exemplo, para que me servem? Já não possuo capacidade de me criar, criarei outro de mim? Penso um pouco sobre tudo o que está acontecendo agora, todavia sinto um sono.

-Que horas são essas? disse-me alguém de voz irreconhecível.

-São horas vagas amigo, é um minuto, em que passados dois dias ainda podem ser um único minuto e continuar por aqui sem se deixar passar por outros minutos, desde que você e sua imaginação queira.

Essas conversas tipicamente citadinas ainda me empolgam. Mas não deveriam perguntar as horas. Dados estes últimos tempos tenho tido problema com o tempo. Ainda caminho pelas ruelas e piso nos cartazes que avisam: "Compra-se os seus segundos!". Não tenho o exato valor dos meus, mas os venderia se pudesse. Afinal, eles não merecem o preço que pago e nem os uso assim com tanta sabedoria.

Nenhuma Santa - Conto





Foi assim, despindo-se ébria, cabelos ao descuido, envergonhada pelo que fez e dominada de cansaço que se rebelou com esses seus devaneios, parceiros adornados, não raro abobados da vida. Uma noite ruim para se terminar com o peito ativo, o coração batendo, mas a cabeça doía e, de certa forma, isso compensava a falta de desgraças complementares. E antes fosse por fatores biológicos a enxaqueca, mas era pelas confusões que se metera.



Foi caminhando pelo corredor da casa, esfregando-se na parede, a luz acesa ficando mais longe e o corpo tendendo para o chão. Andando apoiada pelos objetos fixos, outros sensíveis, pensáveis, quase caindo, mas bastava-lhe a moral tão baixa. Chegou ao banheiro, luz ainda desligada, mais por vontade do que por disposição. Cogitou olhar o espelho, sabia que deveria estar uma sem nada, teto, caráter, sem rosto de mulher. Debaixo do chuveiro, sentou-se no chão e com o braço alongado foi girando, vagarosamente, a válvula que abria o caminho para a água. Manteve a luz desligada, não queria se ver nos reflexos dos fluidos, das lajotas brancas, nem do corpo nu que refletia e transpirava as conseqüências da bebedeira.



Besteiras que fizera. Foi se emaranhar com alguns desconhecidos, um deles seu amigo, desconhecido o ar peralta até então, o outro alguém que a motivasse, e mais um elemento surpresa. Um desses lugares onde a perversão é companhia necessária, vai quem quer, vai quem nunca teve, vão os desesperados, doidos de amor – sexual, mas muito amor- para se entreter. E ontem, pela ocasião, a santa foi se divertir. Pegou, de louca que estava, nos egos, no corpo, juntou-se a todo o suor, a carne salgada, aos fios quebrados dos cabelos alcançáveis e entregou-se aos dois que arranjara no escuro.




Foram, no início,os três, para longe mais da claridade, mas permaneceram no ambiente de fumaça, dos cigarros que faziam soltar das outras bocas o aroma ritmado, o cheiro penetrante, o ar de exagerados, longas baforadas. No escuro se desmascararam, entorpeceram-se, pegavam-na com firmeza, vontade de bicho, fome de lobo, frieza típica de carrasco. Lançavam-na com força nos corpos uns dos outros, no peito grande que guardava toda aquela coragem de mulher, aquela personalidade tão amadurecida. Queriam ir longe, tentaram. Um desses foi procurar o carro que deveria estar guardado, não sabia onde. Pediu que esperassem, logo estava de volta, e correu inturgescido.



Saiu e outro, que tudo observava, já preenchia o espaço deixado. “Voltou cedo, cheio de mais vontades, ora veja, mas foi um menino e veio um homem ensandecido deste carro, o que houve?” Ninguém respondeu-lhe e, de olhos fechados para o que acontecia, nem queria que falassem mesmo. Não percebeu o que houve, mas já estava sendo envolvida por outro, alguém mais desconhecido que os outros dois, o elemento surpresa.




Terminaria a noite toda com esses apertos, beliscos e sussurros, palavreados distorcidos. Mas se surpreendeu com uma batida forte, um empurrão violento. ”Parem! Parem! O que foi? O que houve? Parem!” “Cala a boca mulherzinha! Cala a boca!” “Mas o que aconteceu? Alguém me explica?”. E os dois homens brigavam no chão desnecessariamente, na certa loucos. Uma correria, um alvoroço, gente correndo por todos os lados. ”Segurança! Segurança! Rápido, tira esses daqui! Leva pra longe! Leva!” Eram apenas os dois que rolavam nos socos, mas estavam já os quatro na rua. Lá fora seguiram seus caminhos, ignoraram as outras vidas. No exterior da festeira, a santa mulher, não tardou descobrir que um dos que lhe agarravam, com perfeita aptidão, era um sobrinho seu, que já corria para longe da situação, depois de traído pela tia, apanhado pelo descaso. O amigo que tinha, até momentos atrás, também a deixava só. O outro, que freneticamente lutou e de forma audaciosa se infiltrou na brincadeira, já ia distante, também de face ferida.



Com a cara de arrependida, um corpo cansado e algumas vermelhidões pelo corpo, pensava no tudo que ocorrera, com sono leve. "Que tornado este que fui cair, que vento esse que me derrubou? Que força! Que desejo! Que merda eu me meti!" E dormiu no banheiro, a água correndo, as pernas com uma sem vontade de andar, a reputação escancarada. Feneceu momentaneamente afim de jamais acordar, mas, quisesse ou não, amanhã acordaria.



Balões - Conto

Caminhavam aos domingos como para extrapolar, respirar coisa diferente. Saiam mãe, pai, filhos e uns amigos por vezes. O menino mais velho, outrora mais apegado aos pais, implicava sempre com brinquedos, guloseimas, mas sufocadamente implorava por balões. Era costume, era besteira, mania de criança, não importava, queria os balões. De variadas formas, de diferentes preços, uns de um vermelho forte, escuros, azuis ou cor de pêssego. E chorava em desespero por um que fosse dos cheios casulos de ar, na tentação os fitava e exasperado pedia aos berros que nem sempre existiam, nem sempre eram reais. Diversões, asneiras e por alguns instantes até se esquecia que um dia quis balões, mas logo se lembrava.

Balões sufocados, que não trocam com o externo o essencial de si. E se trocam e tem oportunidade de entrar em contato com a vida aqui fora, de unir seu intimo ao natural de todos, ou é de início, quando descobrem o seu quase viver através de sopros, ou é de fim, quando o quase viver é espalhado num estampido forte, um barulho tremendo, quase que uma confusão, um “bom” de bomba que explode em meio à natureza.

Foi mudando de dente, virando gente no meio de gente e conhecendo o mundo longe das diversões. Aos domingos iam todos a praça, por vezes com rapidez, outras vezes docemente demoradas, os assuntos iam se mudando, constantemente olhares se cruzando ávidos por sentimentos. Já mais maduro, mas novo por dentro, comprou, com seus poucos trocados, uns balões, lá mesmo, pelo antigo caminho da praça. Ainda morava com os pais e a família era a mesma, a casa, a praça, os passeios, só não as vontades. Segurando todos os coloridos balões nas mãos que se descobriam a cada dia, os foi soltando, deixando que voassem e fossem viver longe daqui ou o mais longe que pudessem. Tomavam altitude e aos poucos iam sendo impedidos de subir pelos raios de sol, iam se fenecendo, morrendo, como os desejos que já morriam no menino, os desejos devorados por outros desejos.

Meretriz da baixa avenida - Conto


Coloca alguns cigarros no bolso e outro nos lábios frios. Traga toda aquela vontade incontida e despeja o prazer exacerbado numa fumaça que se atenua. Repete o processo tantas vezes enquanto os olhos procuram companhia ou um corpo, apenas, que não fale, mas obedeça. Fita uns rapazes fortes, esguios e de faces repletas de falsa candura. Não há interesse, o momento é outro, o instante é outro. Se ao invés daqueles homens tão cheios de si, houvesse um menino tímido, disposto a ouvir, aprender. Mas não havia.

Caminha ainda veloz e depara-se com quase riqueza a pouco almejada. Dos olhos escuros e assustados, das mãos nervosas e sem jeito, dos seios atentos e de uma cintura firme, mas súdita do tempo. Era bela, moça muda, mas cheia de corpo. Conversaram pelo tempo necessário. Em se tratando de negócios, agilidade e esperteza são fatores fundamentais.

No ambiente apropriado aos devaneios, se olham. Dele um olhar viçoso, reto, marcado de culpa, olhar que – pasme – tem sede, sede de vida alheia, vida vagabunda. Dela se ofusca vontade, transpira nervosismo, não é a primeira vez, já esteve na situação por muito menos, o prazer, se der caras a cena, será bem recebido por surpresa. Não é tarde pra mudar o tempo, pra sair da situação, mas prefere o risco, a moçoila dos peitos já intumescidos, dos lábios embebedados de desejo, deixa assim.

Um remexer desesperado se prorroga. Trata sua virgem na violência, mas paradoxalmente vai semeando sentimento. Ele, força, fixa-se tenaz ao corpo que se apresenta escravo. Enroscam-se formando um agonizante gemido, um ofegar desinibido, apertam-se. “Pera, calma”. Fortemente atracam-se lotados de uma vontade não compartilhada. Um penetrar de opiniões, um entrar e sair de conceitos. O calor misturado a arrependimentos, ela sem ar: “pera, um instante, vou no banheiro”. Porta do mictório fechada, ela fita-se um instante no espelho, num batom tom escuro escreve coisas na vidraça suja, um “que merda”, uma declaração talvez, e volta ao quarto disposta a deixar o local.

Sendo impedida de ir embora, esperneia e grita “me solta, louco, me solta, porra!”, cada hora mais cheia de arrependimentos. “Porra é o caralho. Puta! Isso mesmo, puta! Meretriz da baixa avenida, é isso que tu é!” e tasca-lhe os punhos na face da pobre. Novamente sendo despida, agora sem consciência, vai tornando-se útil as vontades doentias. Ele certifica-se de que a moça morre e torce-lhe o pescoço pra terminar o ato, pra matar por fora o que por dentro fenecia há tempos.

Sem quaisquer pesos, levanta-se, arruma-se lento e vai acendendo cigarros que lhe sossegam a mente. O corpo que ficasse por lá, destino do lixo todos sabem qual é, o trabalho de dar fim ao entulho que fosse de outro, não dele, o seu bem a humanidade acabara de fazer. E ainda pelo quarto, toma-se de uma vontade de urinar, despejar esse aperto pra fora. Esporrada de uréia, de uma uréia diluída a satisfação, sim, mas também marcada pela culpa. E saindo apressado, sem lavar as mãos, percebe uns escritos adelgaçados no espelho, aproxima-se gradualmente e atento, lê as palavras que lhe soam incômodas: “desejo que o mais novo soropositivo do mundo seja feliz!”. E ela também fizera o seu favor à humanidade.



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Depois de um tempo o conto foi mudado, o final foi reescrito. Especificamente depois de algumas sugestões feitas pelo Guilherme de Andrade, sugestões de muitíssimo valor.

Barca Boa - Conto


Pegou no meu braço com força bruta, num estampido forte, numa surra de boa intenção. Confesso a vontade, ninguém tão perto, sem populações, sem nada. Deixei a falta de ritmo se apoderar de todos os movimentos involuntários que nos surgiam, nasciam alterados, acelerados, lascivos, formados dessa falsa paixão. Ficou assim, nessa respiração vaga, numa espera incontida de um e de outro. Um passo se houver o teu passo, seu passo se houver meu passo, movimentos dependentes.
Desde o primeiro dia de viagem fitávamo-nos cheios de segredo, repletos das más intenções. O tempo passava desesperado e uma ladainha de indiretas e confissões que não são confissões ocupava os dias de férias. Entendiam as meias palavras quem queria e conforme queria, mas todos ouviam. Vive-se de acordo com suas próprias interpretações. Agora, no entanto, retornávamos pras nossas casas no caminho do rio.
Sem mudar de posição, os braços meus seguros naquelas mãos alheias, com um espaço não muito longe entre nosso físico, ainda na espera de uma reação. Voltávamos pra cidade, pra poeira, pro aglomerado de gente. Na barca vinham os outros e nós dois, tinha um silêncio, tinha a sensação do nada, tinha as nossas excitações. Foi toda família passar tempo no interior, talvez quem me agarrasse naquele instante fosse família, tão pouco importa. Qualquer um que nos visse, lá atrás da pequena embarcação, qualquer que notasse nossa falta de ação não se exaltaria. Não muito se abriria aos ares, não raro seriam flores e árvores gigantes, tão gigantes como a vontade de devorar o desejo que andava a solta.
Ficamos ali, estáticos, movidos apenas pelo balançar das águas que nos levavam. No ritmo desacelerado dos fins de diversão, de aventuras e viagens. E viemos, sem mais, apenas desejando estar de fato a sós.

Amanhã vai ser outro dia

É na sexta-feira à noite, quando volta pra casa carregando sacolas de supermercado na mão, que ele percebe o quanto vem se tornando uma versão mais nova e menos sofrida dos seus pais. No ônibus, com o corpo apertado entre as mochilas, ele pensa no próprio futuro. O pensamento volta com frequência na fila da padaria, no elevador do trabalho ou na praça de alimentação enquanto espera alguém. O futuro parece tão intangível mas tão real, tão pendurado na sua frente sem que possa ser alcançado.
Há dez anos atrás ele imaginava bem mais, mas os próximos dez anos a contar de agora carregam uma carga menor de expectativa. Na Internet, ele leu um artigo sobre a crise dos vinte anos e acreditou que a estivesse atravessando. Em casa, ao se abrir com os pais, encontrou outro diagnóstico: falta do que fazer. Quando decidiu conversar com algum outro membro da família, uma tia sugeriu uma corrente de libertação na Universal. Em face de tão pouco espaço para debate, decidiu esperar que o tempo o ajudasse a compreender os tudos da vida que andavam reverberando os nadas do dia-a-dia.
No final, ele não quer acabar como aquela mulher em Boyhood, que cobre o rosto com as mãos, no auge dos seus cinquenta anos, e chora ao constatar que esperava da vida tão mais e de si mesma tão além. “I just thought that would be more”, conclui a personagem frustrada. “Don’t we all think the same?” Ele se pergunta sempre que a cena passa pela sua cabeça.
Ao deixar o ônibus para trás, ele dobra a primeira esquina à direita e na porta de casa respira extenuado. Quando entra, retira os sapatos, guarda as chaves e observa por um instante o desenho que a janela da sala faz do mundo. Passa alguns minutos tentando compreender a obra de arte que se forma do lado de fora e não entende a predileção do artista por cinza. Nesse longo momento de contemplação, ele guarda o significado da pintura que não existe para depois.
No banho, ele permite que o beijo da água no seu rosto amenize o estado de inércia. Como que salvando suas forças, ele apoia as duas mãos na parede antecedendo um pranto que não vem. Acaba o banho, enrola-se na toalha ainda úmida da última vez e, antes de deixar o banheiro, lança um sorriso meio sem-graça para o seu próprio reflexo no espelho ao lembrar que amanhã vai ser outro dia. Durante todas as horas que se passaram, são esses últimos minutos que o deixam mais próximo de entender a cinzenta obra de arte que atravessa a janela da sala.

Vida de Bagagem - Conto


Alguém chegara pelas redondezas. Individuo simples e mais erudito dos que comumente surgem. Conversava de livros, literatura, poesias, até falar mais bonito, falava. Isso interesa na hora, no instante, só para que todos entrem no ritmo e que saibam manipular seus individualismos com mais facilidade, fora esses detalhes: o restante é dinheiro. Conversam mais um pouco, coisa de rotina, encontrar afinidades, desejos, nojo e alguns arrependimentos. Acertos de pagamento e já está tudo finalizado, vem mais o agir do que falares quase memorizados, agora.
Saem, estão a procura de lugares fechados, algo mais particular, propriedade privada. Os espaços públicos de algo deveriam servir, já que de nada serviam. E por ali iniciam o ritual, vozes baixas, personalidades mudadas, mais monstro que homem e uma sensação de inquietude na rua pouco movimentada, inquietude mais própria do homem do que de toda a rua, coisa de casal. Terminam esses amores que surgem das necessidades, finalizam alguns esforços, mais dela do que propriamente dele, e separam-se.


Nome mesmo a menina não têm, chamam-na de Babaloo, e nem documentos que lhe provem a existência. Sabe existir por que por que é pegável, tátil, sentida. Era gente e isso ninguém lhe negue, sendo gente de verdade não precisa documentos que dizem lhe provar aexistência. “Gente , carne, sangue e um pouco de história. Não me importa tanto papel e tão pouca identificação.”
Começou vida corrida cedo, já nasceu na sujeira, no inferno que é isso, viu o caos ainda criança e aderiu-se a esse estado, pregou-se e vivem juntos, juntos e em guerras. Viu de tudo que adulto hoje pouco vê. Saiu de casa, um dia como outro, disposta a mudar de lar, fazer conhecidos, umas colegas. Estava satisfeita: encontrara uma profissão. Daí então nunca mais voltara para sua família de projetos.
Inicio tudo é bem difícil, são sempre novas adaptações, novos meios. Coisas sérias para quem não sabe a definição de seriedade. Conheceu primeiro Margarida, outra com história quase parecida. Essa tinha experiência, tinha um diário na memória, e se morresse tinha algo que até poderia se chamar de vida longa, vida corrida e, bem ou mal, vivida. Arranjou-se espaço para dormir, nada que já não lhe fosse de direito, na rua tudo é de todos, mesmo que na prática não seja. Dormiu até mau no primeiro dia, no segundo venceu as luxuosidade que trazia na fala e desde então a rua já era tão confortável quanto à casa que antes tinha.
Já a profissão, era coisa que se fazia normalmente, nada de agressivo, sistemático às vezes, mas nada que lhe roubasse a virtude. De tudo, o essencial era a amizade, dinheiro também, mas menos que a amizade. Quando era dia de sorte conseguia vinte reais, dias nem tão sortudos ficava por depender das amigas. Tudo ainda era ingenuidade nesse mundo, mesmo que conhecimentos mudem de pessoas para pessoas, passando-se por mãos de tantas. Nessas insuportáveis mãos, tato que provoca ânsia.


Chega novamente alguém, sujo, doente talvez. Adjetivando-se seres que lhe apareciam, esperava-se adjetivos baixos, pequenos, desmerecedores para um convicto merecedor dos mesmos. Babaloo tem educação, foi bem criada por si e sabe diferenciar, mas também sabe respeitar diferenças.

Conversam, tentam engatinhar. É xadrez, rainha branca no sua casa a esperam a espreita, esperando o mover. Defende, ataca, morre, tudo acaba. E quando se pode ressuscitar, ressuscitam-na. Tentando impor o xeque, de sem vontade que já estava, fazia crescer as ofertas. Reis até querem rainhas acessíveis, humildes, piedosas, mas o preço aumenta: xeque-mate. A garota não quer e ninguém tente lhe obrigar, não queria e ponto. O corpo sendo seu bastava sofisticação e manipulação de alguns preços. Finalizam a conversa corrida e cheia de acertos, hoje era um dia de falta de sorte, nada por nada e no final não custa nada mesmo, ficasse assim que não se importava.

Meninas precisam de conversas, de carinho, de amor. E que palavra tão avessa da realidade, tão distante do mundo que conhecia então. E conhecia coisas mesmo, histórias que ouvia. Ainda tenho tempo, nada custa contar uma aqui. Fernanda, a única de nome próprio e pensamentos seus. Havia recebido, tempos atrás, uma grande oferta, dessas que aparecem como tufão, aparecem e embaralham a cabeça. O cavalheiro que saíra nesses tempos apresentou a tal proposta. Eram novidades, assunto de exterior, bem distantes, dizia tudo para convencer, contando fatos, encantando, tudo que uma infantil, fosse mente ou corpo, mulher deseja. Tão ludibriada ficou com as palavras e com “os encantos, as belezas, naturezas diversas, vida desejável e de fantasias a cada minuto, um mundo novo e desconhecido a espera de tão lindos olhos de princesa.” Nandinha, como as outras chamavam-na, se entregou aos falares felicitados. Onde estavam, Nanda e o dito contratante, fizeram logo o que muito, teoricamente, fariam no futuro, esse tempo que vem sem nome, sem rumo, sem preparação. Terminaram e logo foi marcado um dia. Fernanda excitada com as novidades esperou louca, se sentido amada, ternuras, flores, coisas de namorada, perfume, lojas, corações, doces, poesias, sorrisos, palavras no ouvido, músicas, alegria, desejos e ainda hoje espera o dia que virão buscá-la. A vida havia voltado ao normal.

Então que algo marcou a vida das crianças. Fernanda, a mesma Nandinha que de nada em nada se chamava Nanda também, sentiu coisas estranhas. Muita tosse, muita febre, era pneumonia, pensaram. Mas tudo tava tão estranho, a menina sarou. A face corada já se apresentava, viva, lasciva, rubra como só sabia e outro mal lhe abateu. Nem sabiam mais do que se tratava, resolveram, depois de acordos, conversas, tosses e tosses, brigas e tagarelices, levá-la ao médico, hospital, posto de saúde, qualquer lugar que lhe ajudassem, abrigo lhe dessem, e não foi bem assim. Ainda muito correram até conseguir lugar que lhe atendessem. Decidiram desistir, mas outra febre possuía seu corpo. Dormiram por ali, uma perto da outra.

Foi por estes espaços que surgiu ajuda, uma mão, cheia de interesses. Comprou-se algumas vestes e carinhosamente se entregou as menina. Logo perceberam as malícias do altruísmo suspeito e deram-se por compreendidas.

Consultada, exames, perguntas, olhares tortos e falta contato -e como se caráter fosse transmissível pelo ar, no caso se fosse: vida de mundo, mas vida de mente aberta.
A notícia não foi das boas, foi mais um baque que notícia ou notícia que bate, o relevante a se dizer é que doeu. Era HIV, e isso era coisa de se preocupar, foram tempos difíceis, outras histórias felizes para conter os ânimos, os choros, os palavrões. Às vezes histórias até inventadas. E descobriu-se por sorte a nova doença, talvez azar nesse caso, ainda são termos a se definir. A doença nem se manifestara, foi com uma no corpo, voltou com outra sem saber que tinha, foi tudo surpresa. Foram estranhezas em exames daqui, outros exames para confirmações ali, e no final foi esse tão longo soco no estômago.
Nada é fácil, recomeço, fim de ciclo, renascer, vida nova. Mas como sair de uma estado tão banalizadao como deixara o seu se tornar, e agora então que morria, fenecia para o mundo, para o seu mundo de aventuras, adornos sexuais. “Não vai ser fácil, se ainda pudesse mudar as coisas, voltar só um pouco no tempo...". Mas nada se muda, melhora, se tenta, consegue às vezes, mas o cerne prevalecerá.
E foi aprendendo a lidar com essas faltas, essas lacunas no organismo, esses outros fatores. Estava no inferno, que se queimasse então, labareda em seu corpo e faíscas no corpo dos outros. Era o que lhe sobrava, apenas gozar do pouco de vida que achava ainda viver. Margarida, Nanda e Babaloo, todas cheias dessa vida, vida de merda, mas sendo vida, o resto é resto. Quem brinca com fogo um dia acaba se queimando. Quem brinca com que se queima também termina queimado e finaliza queimando outros corpos nus.


Camila - Conto

Nessa casa os quadros contam história, os papéis escravos do drama familiar narram de tapas sem razão a sexo sem desejo. E penso que esse meu corpo, que deus fez de uma alma impura, é belo a vontade para contrastar com o pó miserável que carrega a memória desse casamento sem sorte – não meu.

Ninguém, exceto a mim, circula nesse lugar e tenho certeza de que é hora de esperar o bem amado. Nos seios um tecido suave, nas ancas firmes uma saia velha e nada mais embaixo. Os cabelos úmidos aroma framboesa – agradeço as loções que me dão cheiros de outros continentes - e as mãos rígidas estigmas desse lavar que me corrompe a coluna.

Chega sempre na mesma hora, beijo-o do queixo as pontas do ouvido, sussurra-me uns dizeres que me fazem convencida. Põe fora toda aquela paixão que cresce instantânea. Roçando corpos um tempo e a porta gigante que denota a frente da casa range quase sem se notar, porém nota-se. Separamos os corpos numa rapidez clandestina e fingimos sérios.

- Essas propagandas partidárias deviam dar sossego, na rua, tv, até o mercado do Sião deu pra essas presepadas... Vote consciente e isso, vote certo e aquilo, cogito nem votar esse ano e vocês?, pergunta, tomando todo o ambiente, a mulher que usa do mesmo homem que eu.


- Eu não sei, nenhuma opinião ainda, não entendi o vocês, nem idade a Camila tem pra votar, não é?, respondo que sim nada orgulhosa e deixo os meus pais sozinhos no lugar.